quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

A MINHA MÃE, UM ANO DEPOIS DA SUA MORTE

Muitas vezes lhe ouvi contar que, quando pequena lhe chamavam a francesinha, porque era muito lourinha e de olhos azuis. Também lhe ouvi contar cenas do seu tempo de rapariga. Tudo isso somado ao mais da sua vida que eu constatei - a sua ternura, a sua tenacidade, a sua luta, a sua doçura e grandeza de alma, tudo isso me trouxe, quando fez um ano da sua morte, uma muito difícil saudade. Como catarse para me ajudar a suportar a imensa dor da sua definitiva ausência eu escrevi, então, de mistura com muitas lágrimas, o poema que se segue:

POEMA E LÁGRIMAS

Tu foste primeiro a criança loura,
a francesinha terna de olhos
azuis e doces que se abriam para a vida!
Uma vida de ternuras por haver!

Depois, foste a rapariguinha
com sonhos carregados de mistério
que não teve tempo de ser menina
nem de sonhar a adolescência!

Depois foste a moça que eu hoje imagino,
recordando o que te ouvia contar,
que dividiste o teu tempo
por alguns sonhos, pelo trabalho árduo
e alguns folguedos e alegrias
inevitáveis dessa idade.

Depois casaste, amaste e sofreste
e pariste-me à pressa num interválo
entre lavar a roupa e cuidar dos meus irmãos,
e nunca tinhas tempo para ti própria.
Criaste-nos como quem vence uma batalha!

Depois começaste a envelhecer
e foste, então, de certo modo... feliz,
e cada ruga que surgia no teu rosto
vincava mais a candura do teu ser.

Há um ano que nos deixaste
com esta saudade que me invade
o ser e repassa a alma...
com esta doce ternura
que doi e aumenta sempre!

Deixo-te, aqui, este poema
misturado com muitas lágrimas
que hão-de ser sempre teimosas
e que hoje não posso conter.

Doce mãe!
Deixo-te, também, mais um abraço,
um abraço virtual e muito apertado,
que nunca o será tanto que corresponda
a quantos tu mereceste
enquanto estiveste connosco
e nos adoçaste a vida!

Adeus, eternamente amada, mãezinha!...

Matos Serra/Poema e Lágrimas

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

POESIA É VIDA ETERNA - SONETO

Cada curva do tempo que eu vivi,
de modo, muitas vezes, controverso,
foi forma que encontrei de estar aqui
deixando sempre um verso e mais um verso.


Brinquei, sofri, amei, chorei e ri,
num modo de viver sempre diverso
e todos os meus versos escrevi
para os lerdes, depois, no meu reverso.


Ao chegar o silêncio tão profundo,
calar a minha voz eternamente,
eu não vou aceitar suas algemas;


vou deixar minha voz cá neste mundo,
não podendo falar pessoalmente...
Irão falar, por mim, os meus poemas!...


Matos Serra

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

A GUERRA COMO OFENSA II

No início da guerra colonial, já depois de termos atuado no Norte de Angola, onde o meu pelotão teve seis mortos, um dos quais foi o próprio comandante de pelotão, o malogrado Alferes Mota da Costa, numa missão de demonstração de força que a nossa companhia foi fazer, num périplo para sul, numa linha oblíqua relativamente à costa, saindo de Luanda, passando pelo Dondo, Quibala, Gabela, até Novo Redondo, em que fomos parando nestas povoações e em alguns quimbos intermédios, entramos na Vila da Gabela na tarde de 19 de Junho de 1961 já com várias centenas de quilómetros percorridos em UNIMOGs no meio de uma nuvem permanente de poeira que nos deixou os olhos em chaga. Nessa primeira fase da guerra, da nossa dotação individual de granadas faziam parte três granadas ofensivas, três defensivas e três de fumos. Tanto as granadas ofensivas como as defensivas tinham uma paleta que era fixa ao corpo da granada através de um cordão que com o andamento ou com a trepidação motivada pelo rolar das viaturas muitas vezes afrouxava motivando o incidente inopinado e deram-se muitos e com muita gravidade; digamos que cada combatente trazia uma armadilha contra si próprio, felizmente que algum tempo depois este material foi substituido e estes incidentes passaram a ser muito raros.
Nessa tarde de 19 de Junho a coluna das viaturas que transportava a 1-ª Companhia de Paraquedistas a que eu e o Ricardo (Joaquim Manuel Raimundo Ricardo), pertencíamos
entrou na Vila que percorreu até ao fim da sua avenida central, depois retrocedeu e as viaturas começaram a deslocar-se paralelamente umas às outras. Foi quando houve uma pequena paragem da coluna em que a viatura que transportava a subunidade de combate que eu comandava ficou lateral àquela em que ia o Ricardo e eu fiquei mesmo em frente dele que o incidente se deu. O Ricardo olhou para mim de uma forma que denotava algo de muito grave, porque se apercebeu que o misto-retardador de um detonador tinha incendiado. O Ricardo depois de ter olhado para mim com muita aflição dobrou-se sobre o porta granadas que cobriu com o seu corpo e, ato contínuo, deu-se a deflagração de todas as granadas elevando muitos metros acima da viatura como que um pequeno cogumelo atómico que desfez o corpo do meu malogrado amigo. Um pedaço maior do seu corpo foi parar a vários metros de distância, um outro pedaço veio bater contra o meu peito e o restante do corpo do meu amigo ficou espalhado por um raio de muitos metros. Eu fui um dos seus companheiros de armas que se empenharam a juntar o que restou do seu corpo. A viatura ficou semi- destruida e à volta dela um estendal de corpos. Dois deles passaram a fazer parte dos milhares de mutilados graves de guerra, uma herança fatídica que coube em sorte a uma parte da juventude portuguesa do século XX, os restantes ficaram feridos com mais ou menos gravidade mas todos se salvaram. Na viatura que transportava a minha subunidade de combate, do lado em que eu e mais quatro combatentes estavamos lateralmente com o Ricardo e a cerca de entre dois e três metros de distância do ponto da deflagração, apenas sofremos a expansão dos gases mas nenhum ficou, sequer, ferido.
Tal deveu-se ao facto de o Ricardo ter decidido, in extremes, abdicar do seu próprio corpo para nos salvar a vida. Pelo que melhor que mais ninguém constatei, o Ricardo é, quanto a mim, um herói de que a sua cidade deve orgulhar-se e guardar memória. No mínimo deveria ter o seu nome ligado a uma rua da cidade.

REQUIEM POR RICARDO

Na abdicação suprema do teu corpo
nos asseguraste a vida
e com tua fulminante
e austera morte
te tornaste inesquecível
e imortal.
Tua dádiva suprema
e teu exemplo
inscreveram o Infinito
em nossos corações.
Lá longe,fraterna e heróica,
tua vida se esvaíu,
mas, aqui, neste padrão,
viverás, eternamente,
nosso e presente.

Proferido pelo teu eternamente
reconhecido amigo Matos Serra
junto ao PADRÃO DOS COMBATENTES
DA TUA CIDADE DE PORTALEGRE.