segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

OS CASAMENTOS DE JACOB - PELA DIGNIFICAÇÃO E LIBERTAÇÃO DA MULHER

Este despretencioso poema, reconta, com um cheirinho de ficção, uma história da Bíblia, e reescreve a ideia que Luís Vaz tratou num dos seus mais belos sonetos, contar em poesia, o cambalacho acordado entre Labão e Jacob, em que este pastor comprou ao amo, as duas filhas, Lia e Raquel. Luís Vaz dourou bastante a pílula, com o extraordinário romantismo que lhe era peculiar, enquanto que eu pensei pôr a tónica na crítica à poligamia da época que a Palavra de Deus tem continuado a aceitar.
A possibilidade das mulheres poderem decidir sobre os seus problemas, nomeadamente, sobre o estabelecimento das suas próprias relações conjugais, foi muito difícil, através dos séculos, como esta história, que Camões cobriu com o manto diáfano da fantasia, comprova.

   TÍTULO: OS CASAMENTOS DE JACOB

Jacob, um rapagão que era pastor
e guardava as ovelhas de Labão,
era mais que pastor, um pingamor,
não controlava o fogo da paixão.

A filha de Labão, linda donzela,
às vezes passeava pelo prado,
o sol iluminava o rosto dela...
Jacob quase ficava deslumbrado.

Um dia, vai Raquel a ver o gado,
esvoaça-lhe a saia com o vento,
o pobre do pastor fica excitado
e vai pedir Raquel em casamento.

Envolvido nas teias da paixão,
tornou-se para além de guardador
do rebanho de ovelhas de Labão
num promitente genro do senhor.

Jacob foi recebido por Labão
e Labão que era mente muito astuta
e propôs a jacob a condição
de a pagar com sete anos de labuta.

Sete anos a partir deste momento
a guardares a ovelhas dia a dia...
mantens-me em equilíbrio o orçamento
e, no fim, tê-la-ás por companhia.

Jacob apaixonado por Raquel...
sete anos a pagar... chegou o dia...
lá vai p'rá receber... mas, pobre dele,
Labão guardou Raquel e deu-lhe a Lia.

Fica o pobre pastor desapontado
que Labão o contrato não cumpria,
p'ró negócio não ser tão desastrado
lá se conformou... levou a Lia.

A força da paixão não se esvaía...
só Lia que era doce como o mel,
com o Jacob na cama conseguia
fazê-lo esquecer-se da Raquel.

Se a Raquel ia ao campo e se esquecia
de aconchegar um pouco os tornozelos...
tinha sonhos à noite e não dormia...
às vezes, mais que sonhos, pesadêlos.

Quem pagava era a Lia que dizia:
meu amor, eu, assim, não aguento...
por isso ele voltou, um certo dia,
a pedir a Raquel em casamento.

Vai daí... o amor tirou-lhe o ócio,
o Jacob andava mesmo apaixonado
e, propôs a Labão outro negócio,
mas, a pensar num preço moderado.

Trabalharás sete anos sem soldada
que eu cá me arranjarei mais a velhota,
senão... vou vender a tua amada
a outro, que me pague em boa nota.

O ativo pastor ficou sem fala...
ter que esperar sete anos pela boda...
mas...seja como for... eu vou levá-la
nem que eu seja pastor a vida toda...

Foi assim que Jacob acasalou
com as duas belas filhas de Labão...
só assim a paixão se moderou
e controlou o fogo da paixão.

Foi sempre um bom marido que cumpria
e, além de cumprir, era fiel...
uma noite de amor era de Lia
outra noite de amor a de Raquel.

Contrato entre Jacob e o Labão
que as mulheres não contavam p'ró tratado...
para eles foi uma boa solução
e Deus... abençoou este noivado.

   Matos Serra, in Poesia de Cariz Social.
          É PRECISO

É preciso abrir caminhos à esperança e portas ao futuro
É precisa a bonança e um jardim com ar puro

É preciso ter alguém à espera com um stock de abraços
É precisa uma nova primavera e um jardim com terraços

É precisa resistência e não ceder a cansaços
É precisa a coerência e não cruzarmos os braços

É preciso, meus amigos, resguardar a saúde
É preciso que a luta prossiga e que tudo isto mude

É preciso outro toque e um outro alaúde
Que o povo o provoque e uma força que ajude.

     Matos Serra
    24/12/2012

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

UM DOS MEUS POEMAS DE NATAL
( APELO À TRADIÇÂO)

TÍTULO: QUERO DE VOLTA O MENINO
                 JESÚS E A TRADIÇÃO

Porque nos mandam, agora, p'lo Natal,
em nome de um Deus Celestial,
aquele velhote da Lapónia,
que se nos apresenta jovial,
mas, com o seu ar comercial,
nos mercados e lojas da Parvónia?
Que ensaia um ar alegre e sorridente
p'ra nos vender desde a água de colónia...
ao amendoim, licor ou aguardente?


Prefiro a figura aventureira,
esse traquina armado em alpinista
que descia p'la minha chaminé
vindo do Céu como um para-quedista,
pelo qual eu esperava a noite inteira,
que aquecia a pilinha na fogueira
e não vinha de trenó, andava a pé,
que nos trazia brinquedos na sacola
se chamava Jesús de Nazaré
e não vinha apregoar a coca-cola.


Matos Serra, in Poemas de Natal.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

        É PRECISO

É precisa uma flor
é preciso um bom vinho
é preciso o amor
é preciso um caminho.
É preciso o prazer
é precisa a ternura
é preciso viver
um amor em loucura.
É preciso o carinho
é preciso o calor
melhor que um bom vinho
como um terno licor.
É preciso dizer
é preciso afirmar
que há um verbo a escolher
que é o verbo amar.
É preciso dizer
que o amor tem um custo
é preciso saber
qual o preço que é justo.
A proposta correta
e o justo valor
está na troca direta
é amor por amor.

 Matos Serra







sábado, 4 de agosto de 2012

FINGIR OUSADIA

COMENTÁRIO AO ADÁGIO - " QUEM TEM MEDO COMPRA UM CÃO"

TÍTULO: FINFIR OUSADIA

Esta frase que se inscreve
na cultura popular
e se aceita como adágio,
eu não sei se ela se deve
de ânimo leve aceitar
sem escrutínio nem sufrágio.

E não sei se faz sentido
uma tal aquisição,
e se o medo referido
é entendido ou se não...
porque não é solução.
Os medos são muitos mil,
e dever-se-ia então
em vez de comprar um cão
era comprar um canil.

Quem a frase pronuncia
criticando o medo alheio...
por certo que se alivia
quando ao seu chama receio.

Para nós não é segredo
que ter medo de ter medo
circunscreve um medo crasso...
quando ao finfir-se ousadia
o nosso é simples fobia
e o dos outros é cagaço.

O medo é um sentimento
a não ser menosprezado,
quando se diz: "Guarda a vinha"
é porque em dado momento
reforça o tino e o tento,
a atenção e o cuidado,
na defesa da vidinha.

E... sabe bem que é assim
quem dele fez companheiro
numa vida agreste e dura,
até conseguir, por fim,
estar com ele a tempo inteiro
que o medo não se esconjura.

Porque o medo é, afinal,
próprio de qualquer mortal...
também de nós, seres humanos.
Cá por mim o que é preciso
é guardar sempre um sorriso
para o medo não causar danos.

E QUEM USAR A RAZÃO...
NÃO PRECISA COMPRAR CÃO.

Matos Serra, in comentário aos adágios

QUANDO A VERDADE NOS MENTE

TEMA: TRATAMENTO DO ADÁGIO POPULAR - "QUEM CANTA, O SEU MAL ESPANTA.

QUANDO A VERDADE NOS MENTE

Quem canta, às vezes, coitado...
a fingir que anda contente
sentindo-se contristado...
finge mal o que não sente,
com a verdade nos mente
tendo a tristeza presente
no cantar desafinado.

Nessa linguagem que canta
vemos a alma que chora...
A alma, trai a garganta,
porque... vemos muito embora
na voz que a verdade espanta
a fingir de ave canora...
a alma que se quebranta.

QUEM CANTA, SEU MAL ESPANTA.
Até pode ser verdade...
mas, quando a tristeza é tanta...
o cantar não persuade.
Creio, até, que desencanta,
essa tristeza que invade
a quem ouve... e a quem canta.

Matos Serra, in comentários aos adágios

CRONOS É UM DEUS IMPLACÁVEL

TEMA: COMENTÁRIO AO ADÁGIO POPULAR "O TEMPO QUE VAI NÃO VOLTA"

Por mais que a Cronos me roje
a pedir que não se mexa,
que me deixe estar aqui
neste bem-bom que é a vida...
Vai-se o ontem, vem o hoje
e Cronos sempre me deixa
e nem apenas sorri
na hora da despedida.

Ele vai, vem a idade
que sempre me causa medo
por poder trazer doença...
"trazer dores, decrepitude..."
e, eu, não fico à-vontade
por saber que tarde ou cedo
nunca vai haver quem vença
a que nos leva a saúde.

A que se chama velhice,
ou idade, ou duração...
cada um diz como quer,
não precisa dicionário...
a que nos traz a chatice
de colar os pés ao chão
e faça o que se fizer
passa o corpo a ser calvário.

Cronos vai e já não volta,
volta outro deus mais novo
com igual comportamento,
que tem o mesmo apelido...
O que depois nos revolta...
é que, como diz o povo,
é sempre um cavalo - o tempo
que nos deixa envelhecido.

Que haverei eu de fazer
para vencer a sucessão
de dias que vão surgindo?
Que cada qual me ajude?
Que cada um que vier
traga alguma animação
e que me deixem ir indo
com sorte, vida e saúde?

Vou tornar-me indiferente
a esta cronologia
que controla o meu destino,
e vou, sem fazer alarde,
a tentar alegremente
recorrer à poesia
e pedir... com muito tino
à morte que venha tarde.

Matos Serra, in comentários aos adágios.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

UMA KALACHI SOBRE O PEITO


TEMA: A GUERRA COMO OFENSA - 3

A história que aqui vos deixo não é ficcionada, ela é fruto de uma das experiências mais dolorosas da minha vida e que ha-de sempre acompanhar-me até aos meus derradeiros dias.

TÍTULO: UMA KALACHI SOBRE O PEITO


Os helicópteros saíram da base,
sorrateiros... em voos rasantes...
cosidos com as vertentes e os vales,
como um pequeno enxame de moscardos,
deixando o eco do seu zumbido metálico
a repercutir-se nas curvas do rio
e nas encostas da floresta luxuriante.

Passaram, sorrateiros,
como grandes libelinhas de aço,
dissimulados, rente à orla da mata,
como convinha ao secretismo da missão,
voando a três ou quatro metros de altura
e largaram dos bojos um grupo de sessenta combatentes.

O acampamento de guerrilheiros
situava-se a cento e cinquenta metros da orla,
camuflado na floresta densa.

Eu fazia parte do grupo de assalto
que avançou em linha
e surpreendeu o acampamento
com fogo de rajadas.
Homens, mulheres e crianças,
"expressão de um povo em armas",
tombaram no chão do acampamento.
- Um menino pretendia fugir,
segurando os próprios intestinos,
mas... tombou no solo.

Muitos guerrilheiros dispararam em fuga,
alguns deixaram as armas.
A guerrilheira mestiça
desapareceu por entre o arvoredo
saltando com a agilidade de uma gazela,
revertendo a fuga, a intervalos sucessivos
para disparar a KALACHI
que mantinha a tiracolo
com a bandoleira distendida
para lhe facilitar a execução do tiro.
-O grupo disparou rajadas na direção dos fugitivos
e iniciou a perseguição.

Cem metros à frente,
caída, de costas
sobre a raiz de um embondeiro,
a guerrilheira jazia
com a kalachi cruzada sobre o peito,
a respiração ofegante
e sangrando de várias prefurações.

A minha subunidade seguia
protegendo a retaguarda do grupo,
e, da frente, em passe-palavra,
veio a ordem do comandante:
Mandar abater a guerrilheira a golpes de sabre.

Recusei-me a executar a ordem
para poupar os meus soldados
ao efeito dessa violência atroz.

No ponto de reunião sugeri:
Que a guerrilheira fosse evacuada e salva,
e... fui severamente repreendido,
e... ameaçado com o regulamento militar.

Ela era o símbolo da coragem,
da beleza e da juventude e, ao mesmo tempo...
era tão frágil e desprotegida...
Havia no seu corpo tombado
uma aura de grandeza heroica e comovente.
Eu, não lhe havia retirado a arma,
achava que era um dos seus direitos,
para além do direito à vida.

Os meus soldados
tinham ficado impressionados e comovidos
com a grandeza daquele corpo frágil de mulher
e muito solidários comigo
e com a perspectiva de salvarmos
aquela vida presa por um fio.

Em cerca de um ano de convivialidade
em missões de combate...
tinhamos aprendido
a ser bons camaradas de armas,
bons combatentes, e também...
bons seres humanos;
apesar de termos, todos,
pouco mais de vinte anos.

Foi então que o comandante da missão
renovou, perentório, a ordem de execução.
Eu deveria mandatar, a um dos meus soldados,
o cumprimento da ordem...
ou, executá-la eu próprio,
ou então, sujeitar-me a julgamento militar.

Quando o grupo retrocedeu
continuei com a minha subunidade
como segurança à retaguarda.
Ao passarmos pela guerrilheira ferida
ela continuava com a respiração ofegante,
entre a vida e a morte.
Reparei no constrangimento dos meus soldados,
temendo, cada qual, ser o destinatário da ordem
para proceder à execução.

Para os poupar e defender de traumas futuros
e no gesto mais difícil de toda a minha vida,
usando não o sabre mas a minha arma automática,
abati a guerrilheira.

Maldita a guerra! Maldita a opressão!
Maldita a violência e maldito o colonialismo
passado ou atual!...
Esta, é para mim, a história mais pungente
que hei-de arrastar sem possibilidade de esquecimento,
e esta guerrilheira, que hoje será um ícone
da história do seu país - Angola,
é um dos meus símbolos máximos
da grandeza das mulheres.

Terei sempre presente
a imagem do seu corpo
jovem e frágil
como um símbolo de grandeza
"SEGURANDO UMA KALACHI SOBRE O PEITO"!....

Matos Serra, in HISTÓRIAS DA GUERRA
                        COLONIAL

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

ALEGORIA DO CAVALEIRO

"O SONHO É UM CAVALO ALADO" SOLTE UM POUCO AS RÉDEAS
O poema que se segue integra-se na chamada "Poesia Tradicional" muito cultivada aqui no nosso Alentejo e tem mote da poetisa natural de Vila Viçosa, Teolinda Trindade. A modalidade em questão fez parte de um concurso de poesia que teve lugar na cidade de Évora e o poema em epígrafe foi distinguido com o 1-º Prémio.

MOTE DE TEOLINDA

Há grandeza em cada ser
Na vida que nos é dada
Ter a força de viver
É uma prenda abençoada

I
Ter-se o dom de em cada dia
poder-se ir p'la vida fora
a buscar em cada aurora
a luz, o sonho, a poesia...
Apelando à alegria
que não devemos conter.
A vida é rio a correr,
e, no sabor da corrente,
num caminhar permanente
há grandeza em cada ser.

II
Na força de cada braço,
no vigor de cada dedo,
ir desvendar-se o segredo
p'ra resistir-se ao cansaço.
Mas... controlar cada passo
p'ra não se ir em desfilada,
porque... a meta desejada
só se conquista e alcança
na firme sela da 'sperança
na vida que nos é dada.

III
Ao eterno cavaleiro,
que habita dentro de nós,
darmos espada e darmos voz
para caminhar altaneiro!...
Dum percurso traiçoeiro
sabermos retroceder,
dispormos a aprender
a tornar a vida bela...
audaz e firme na sela
ter a força de viver.

IV
Se há um dia enevoado...
vem outro que é mais risonho,
para refazermos o sonho
dia-a-dia renovado.
Ao nosso cavalo alado,
à nossa etérea montada,
dar-se a dose equilibrada
de amor, esperança e ternura,
um sentido de aventura
é uma prenda abençoada.

Matos Serra

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

O SEGUNDO MILAGRE DO S. MARTINHO

HISTÓRIA DO POEMA


Quando o grupo de amigos que compõem O GRUPO "OS AMIGOS DA POESIA" organizaram a programação destinada a invocar o 11 de Novembro, "DIA DE S. MARTINHO" eu fui incumbido, em assembleia, de preparar a introdução ao evento. Tratar-se-ia de uma resenha histórica relativamente ao momento coevo do soldado das ostes de Constantino e Licínio, ao ser desmobilizado das fileiras romanas, ir da Itália para França, onde assumiu o papel de um dos primeiros bispos da cristandade, e, claro, a atribuição de um milagre que, ao que parece, foi inventado mais tarde, para dar impacto à nova confissão e ajudar a influenciar o povão para lhe conferir, paulatinamente, uma maior base social de apoio. Isso, claro está, veio a tornar-se progressivamente uma verdade venerada e a integrar-se na história, na lenda e na cultura. O povo, em cada região do Império, acrescentou-lhe, depois, os seus ingredientes culturais, étnicos e antropológicos e começou a prestar-lhe o seu culto. Aqui no sul do país, mormente no Alentejo e Ribatejo, o povo juntou-lhe os meios ao seu alcance - o vinho, a água pé, a aguardente e as castanhas com que passou a enriquecer as libações festivas e a adoçar, nas invocações anuais, a bebedeira dos sentidos.
Ao engendrar, os elementos culturais para fazer a minha introdução, eu, lembrei-me de inventar também o meu milagre do S. Martinho. Porque razão não teria eu também esse direito? Se se têm inventado tantos que mal haveria em inventar mais um? E, avancei com um milagre descrito em verso que agora vou acrescentar ao meu blog, portanto, lá vai verso.

O SEGUNDO MILAGRE DE S. MARTINHO
( Apresentado em Portalegre a 11 de Novembro de 2011)

Vi-me um dia a viajar
por um caminho onde o tempo
e o espaço eram difusos,
num Outono que ainda lembro.
Era difuso o caminho
e era o mês de Novembro
e dia de S. Martinho.

Teve facetas estranhas,
estranhas... e bem confusas...
e outras que já não lembro,
com frialdades tamanhas!...
Frias brisas de Novembro
e peripécias difusas.

Eu rolava serra acima,
às vezes, fora de mão...
Demandei terras de Amaya
onde há história e tradição
e o mistério nos anima
por onde a lenda se espraia.

Viajava na aventura
sem sonhos de fama ou glória,
só pensava na procura
do encontro com a História.

Entretanto, anoiteceu
e perdi-me no caminho,
quando tal aconteceu
vi-me isolado e sozinho.

Logo a bruma me envolveu,
porque a noite me encerrou
em denso manto de breu
que de todo me isolou.
Perdi o centro da estrada
no espesso nevoeiro,
livrei-me por um quase nada
no momento em que me abeiro,
com a visão desfocada,
dum enorme precipício...
Todo o meu corpo tremeu,
o olhar se enevoou
como se fosse enfrentar
juizes do santo ofício.
Para meu azar e suplício,
por má sorte ou por má sina...
cai a roda num buraco
mesmo à beira da ravina.

Óh!... que má sorte madrasta!
Disse eu, de mim para comigo...
Já me basta o que me basta,
de medo, aventura e perigo.
Saí de dentro do carro,
fui para junto de um chaparro
onde procurei abrigo.

Porque o frio chegava a trote
no dorso da fresca aragem,
resquício do vento norte...
eu lembrei-me do capote
que ficara na bagagem.
E, sem ser homem de fé
que mova muitas montanhas
lembrei-me da água pé
mais o calor das castanhas
que me aquecesse as entranhas.

Quase a perder o alento
lembrei-me nesse momento
de invocar o S. Martinho,
e, naquela situação,
eu rendi-me à tradição
das castanhas e do vinho.

Então, vi seis cavaleiros,
trepando sobre barrancos,
com os seus cavalos brancos
que me apareciam fronteiros,
cujos arreios reluzentes
iluminavam a noite!...
Sem ser homem que me afoite
a tirada transcendente
eu perguntei: Quem vem lá?
Pararam à minha frente!...

Foi então que num instante,
numa visão deslumbrante
uma luz iluminou
todo o espaço circundante
e então um deles falou.

Com seus modos imponentes,
vinha de toga vestido
que caía meio dobrada
sobre a cela da montada...
Me disse que era Trajano,
o Imperador Romano,
que nas Espanhas nascido
em Mérida teve morada.
Outro, de ar altivo e sério,
quase de porte divino,
declarou ser Constantino
que repartiu com Licínio
a extensão do seu império,
e reinou no Oriente
com ousadia e critério...
Fez do império em declínio
o seu império imponente...
evitou a confusão,
quase a raiar o abismo,
adotando o Cristianismo
e fez-se chefe cristão.
Para evitar a peleja
concentrou em sua mão
o poder e a gestão
do Império e da Igreja.

Um outro era o nobre Lísias,
terno pai da bela Maia,
que fundou esta cidade,
há muito tempo passado,
um pouco ali mais ao lado,
lá para junto da arraia.

Ao seu lado vinha a filha,
que ainda vive encantada
por montes, serras e vales...
e que espalha a lenda antiga
com seu cavalo de luz
e é mãe desta cidade.

À frente vinha Jesus
com o seu servo Martinho,
soldado de Constantino,
que lutou p'la Cristandade
com a espada e com a cruz,
que escondia sob a capa
a sua infusa de vinho.

Logo me pôs àvontade...
Da capa deu-me metade
e, do vinho... meia infusa...
a mente ficou confusa
mas passou-me a frialdade.

Foi então que, de repente,
senti o corpo mais quente
como um doce verão chegando,
e, vi seis cavaleiros voando
subindo sobre a vertente.
Com intenção de alcançá-los
eu tomei a viatura
com os noventa cavalos
a voar a meia altura
comprimidos no motor
para poder controlá-los.

Cruzando o dorso da serra,
pairamos sobre a cidade...
baixamos de novo à terra
em perfeita liberdade
no largo dos combatentes,
e ficamos mesmo em frente
da Tasca do Zé Bébé,
para bebermos um copinho
de bom vinho e água-pé.

Só depois é que acordei
ainda um pouco estremunhado
deste meu sonho agitado.
Era já um novo dia...
Na rua da Mouraria
estava na cama deitado.

Matos Serra
11 de Novembro de 2011

SUAS GRAÇAS E SEUS SONHOS - SONETO SOBRE AS CRIANÇAS

Dedicado a todas as crianças do mundo ainda sujeitas a um mundo de falcões e predadores.

SUAS GRAÇAS E SEUS SONHOS

Pudera ser poeta para cantar
os olhares e sorrisos das crianças...
Dos meus versos poder fazer brotar
arsenais de alegrias e bonanças.

Ter um subtil engenho e alcançar
mimosas sinfonias e lembranças...
em versos talentosos recordar
suas graças e sonhos - suas 'speranças...

Quisera num soneto comprimir
todo o bem, todo o amor, toda a ternura...
e, carinho, por todas repartir.

P'lo mundo, e num tropel de aventura,
correr, voar... em busca de um porvir
de carinho, de amor e de ventura!...

Matos Serra

SUAS GRAÇAS E SEUS SONHOS - SONETO SOBRE AS CRIANÇAS