quarta-feira, 30 de novembro de 2011

BRINCAR NO PORTUGUÊS

O trabalho despretencioso que se segue é a resposta a um desafio que me foi posto relativamente a uma frase do extraordinário escritor moçambicano Mia Couto "Venho brincar, aqui, no português, a língua". É, portanto, uma forma descomprometida de ensaio de escrita em que, também eu, como sugere a frase em epígrafe, me proponho ir de encontro ao objetivo do Mia Couto, já que também penso que a nossa língua ganha muito ao ser ensaiada, brincada, treinada, alegrada e, das formas que nos seja possível experienciada, ganha ela, língua portuguesa, e ganhamos nós falantes e fruidores dela, também em termos de escrita.
Também eu para "brincar um pouco, aqui, no português, a lingua" recorri ao seguinte artifício:
Escrever um poema, considerá-lo como um campo, uma lavra, e usar as palavras como as sementes ou as plantas, se der mais jeito considerar assim, considerando uma certa agrimensura na distribuição das sementes relativamente à plantação geral. Dividi, por isso, o campo em três setores, ou seja, dividi o poema em três partes, cada parte corresponte à extensão de um soneto clássico, usei as aliterações para dar à linguagem colorido e ritmo, naturalmente, respeitando a medida do verso e as acentuações para lhe conferir musicalidade e alegria. Para brincar um pouco mais, em cada uma das partes que corresponde à extenção e ao aspeto formal do soneto, variei a medida do verso, assim, no primeiro usei o verso, heróico, no segundo, o sáfico e no terceiro o alexandrino. Como compus o trabalho de uma assentada, consegui, sem grande dificuldade, manter o ritmo e o colorido da linguagem até ao final da segunda parte, quero dizer, do segundo soneto, mas tive dificuldade em manter a fluência a partir do início da terceira parte, facto a que dou expressão na própria linguagem que aí utilizo.
Foi uma tentativa, à minha maneira, de brincar um pouco no português. Foi o que se conseguiu arranjar e, portanto, aí vai verso:

TÍTULO: BRINCAR NO PORTUGUÊS

PRIMEIRA PARTE - EM DECASSÍLABOS OU HERÓICOS

Gosto de aliterar os meus poemas,
"as lavras, de palavras semeadas",
nas estâncias com distâncias programadas,
não põr traves, entraves ou dilemas;


Nos versos pôr diversos emblemas
e cores, que sejam flores quando cantadas,
as falas às escalas atreladas,
sem correntes, grilhetas ou algemas.


Pôr na palavra um chiste se estou triste,
num verso que não seja controverso
pôr saborosa prosa e fluidez...

Que humor com graça em riste é que resiste,
fazer caminho inverso sobre o verso,
brincar de quando em vez... no português.

SEGUNDA PARTE, EM SÁFICOS OU HENDECASSÍLABOS

Vou p'lo curso do percurso do discurso,
que lendo estetas, prosaicos e poetas
é que descubro as cadências mais concretas,
"busco imagens ou passagens de recurso";

Treino as frases mais capazes no decurso,
querendo aferir para atingir as minhas metas
com palavras mais concisas e corretas,
e, a brincar, treino as fases do percurso.

A pensar, dizer, escrever ou a compôr...
vou pintando o português em tom e cor,
musicando a bela língua de Camões...

Meus poemas são esquemas de linguagem,
são propícios exercícios de abordagem
com diversas, controversas, emoções.

TERCEIRA PARTE, EM ALEXANDRINOS OU DODECASSÍLABOS

Já só garanto o desencanto do meu canto,
porque, entretanto, no meu canto estou tolhido,
a minha alegre e bela musa que era um espanto
eu não sei se soçobrou ou terá ido.

Já tenho em coma o cromossoma do ouvido,
em vez de humor veio o estupor do desencanto...
se um incidente imprevidente houver sofrido
esta alegria anda escondida em triste manto.

Quando quiser... deixá-la vir, não tenho pressa,
porque eu já vi que ela anda assim um tanto ou quanto
meio arredia da poesia e do trabalho...

Só vos garanto por enquanto uma promessa:
meto esta musa tão confusa num recanto"
para brincar no português - e já não falho!...


Matos Serra em
ensaios de linguagem.

Sem comentários:

Enviar um comentário